sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Esperanças teimosas

 por Silvia Badim

Talvez todas as esperanças sejam, de fato, um tanto teimosas. Mas algumas se destacam, e se acoplam em nós como suspiros inevitáveis, teimosas feito o diabo. Chegam a ser quase insuportáveis, de tão ingenuamente esperançosas. Teimosias abestadas de quem quer viver o que não se vive, e acho que você pode entender a que me refiro. Mesmo correndo o risco de parecer surtada demais, explico-me. Afinal, esse rótulo não mais me assusta. Surtemos.

A gente respira e suspira e de repente quer viver de novo o impossível. O peito enche daquela vontade de se afundar na cegueira e não ver mais nada, de mergulhar na ignorância boa de não entender e poder inventar tudo de novo. Mesmo nos casos terminais onde não tem jeito, quando a gente tenta e tenta e espreme e a coisa não sai, a gente acredita. A gente acredita no absurdo, consciente do querer estéril sem útero nem óvulo nem nada. Seco e esturricado como a terra rachada do sol do meio dia no cerrado. Nada nasce ali. É uma estupidez, pois é, você me entende. Mas a gente continua acreditando, e tentando, com uma teimosia infernal que não esfria.

É triste e bonito, como olhar o menino que quer o doce da padaria e sonha com aquelas mastigadas maravilhosas de dentes cheios de açúcar. O menino olha encantado o maior dos prazeres do seu mundo oral, o gozo profundo do chocolate derretido por entre os dedos, da língua feliz por entre os restos de doce de leite no canto da boca. Mas a mãe diz não. Não? É, não. O doce olha para o menino açucarado de chocolate e doce de leite de doer o dente. As vontades saltam pelos olhos. A mãe o puxa, arrastando o não pelos tantos quarteirões que parecem desertos de espera, com o choro da criança a ensurdecer os arredores. Choro que vem da negação do que tanto se espera, profundamente. O não impossível do desejo da infância.

A gente tem que digerir o não, mas ele é refluxo preso na garganta. E o choro é sentido como o da criança sem doce de domingo. A gente quer o doce até não poder mais. A gente quer as salivas impregnadas do gozo impossível. O prazer arraigado do desejo pueril que se realiza pleno, em versos e prosas, em toques e noites ardentes a perderem-se de vista. É tudo em vão, agente sabe, mas a esperança teimosa tem vida longa. Quase zumbi, ela renasce. E então a gente sai correndo em busca do desejo, seja como for, com a auto-estima afiada e um tanto de fé estocada na bagagem. 


Seja como for - a gente pensa - e cria estratégias criativas e charmosas de aproximação. Muitos e muitos infalíveis e exitosos encontros ao acaso, diálogos ricos, jantares marcados de repente, noites de sutileza e ardência febril - daquelas que agente já viveu um dia. A gente pode, a gente sabe que existe, e que vale a pena o percurso infindo de espinhos pontudos. A gente já esteve lá, acredite, e vale a pena encarar o não, porque sem o não e mais um não, e talvez outro, não há sossego para o desejo latente de doce. Vai que, não é? A gente acredita, a esperança é insuportavelmente teimosa, você sabe.

E eis que chegam os fracassos dos acasos, aquelas ausências mudas e espaços em branco. Então ensaiamos cartas intermináveis, conversas telefônicas, recados na secretária, sms ou qualquer coisa que se faça chegar. Falas articuladas que se perdem e se encontram, saem  e voltam da lixeira umas duzentas vezes, mesmo diante dos argumentos tão convincentes que as jogaram no limbo para sempre. E da última vez a gente tem certeza, enfim, que elas devem permanecer lá para nunca mais, lixo no lixo, sentença sem recurso, irremediavelmente o fim da linha.

Mas de repente, do fundo do buraco negro, de novo aparece ela: a esperança. Brilhante e colorida, com aquela merda toda que aquece por dentro e nos joga para a beira do abismo. Impulso. E é claro que a gente pula. Pela ducentésima quarta vez ressuscitamos o morto-vivo, com argumentos que parecem fazer todo o sentido. Sim, é isso, vamos pular logo porque não temos tempo para papos cansados. Venta frio e a gente sente um pouco de medo. É quando precisamos desesperadamente de uma voz irmã, que nos faça acreditar que existe alguma sanidade no meio disso tudo. Telefone e bate-papo na madrugada com ela, ou aquela, elas, aquelas loucas e interditadas, capazes de entender o que se passa.

As loucas acendem o cigarro, abrem o vinho, comem ávidas o doce - perdidas no espaço mágico onde existe esperança boa de olhos vibrantes. E eis que ela grita, com entusiasmo e vontade de fogo: pelo-amor-de-Deus, manda! Pronto, ficamos mais aquecidas. A gente manda, claro que a gente manda, mesmo sabendo que não deve, mesmo convencidas de que não existe eco, mesmo sabendo que o suicídio é inevitável e a queda é lenta.

Bom, o eco não vem, por óbvio, ou vem meio surdo, aquém daquilo tudo que se espera. Sim, porque no fundo a gente ainda espera, ansiosamente, comendo cigarros com farinha. A gente espera porque a esperança é um inferno de tão teimosa. O que se espera, afinal, eu não saberia dizer, mas não é nada dessas coisas que você certamente imagina. A gente espera o improvável.

Resta então apenas aquele gosto de osso duro machucando os dentes, um gosto ocre de sangue no fundo da mordida. Um gosto de morte e de quero mais. Um desejo de vida renascida. E a gente pensa de novo se não é bom insistir mais um pouco, só mais um pouco, afinal a gente já viu e já provou e sabe que existe. Não? Não, é fato, não dá. Nada vem, a gente sabe, é uma burrice sem fim.  É nova morte despencada e estamos cansadas, sim, a gente também cansa e o corpo dói de tanto calo.  Esquece.

Mas, será? Essa maldita pergunta assombra o pensamento que nem piolho. E de novo, como uma praga devastadora, uma nova prosa começa a se delinear secretamente, um novo impossível vai crescendo em silêncio até ganhar corpo e voltar para o começo do ciclo.

Ai céus! Interditem-me, por favor!

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