sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Fumar sem tragar, nem pensar!

Por Silvia Badim

No dia seguinte, bem no dia seguinte ou alguns dias depois, tanto faz, a ordem não importa, é sempre uma cronologia acelerada de quem tem muito, a gente manda para o outro uma piração qualquer. Os dedos coçam, as unhas se agitam, a tela do computador brilha, ah, a tela brilhante e os quadradinhos em branco, e a gente escreve algo sobre estar do avesso, sobre sentir as águas fartas, sobre amor de escamas ou sobre estar nua no gelo do ártico, qualquer intensidade assim, daquelas de quem mergulha no rio que corre.

Coisas assim que saem meio sem querer, vomitadas lá das entranhas, vômito bom e quente de quem comeu muito até doer, degustou banquetes cheios de prazeres, de boca aberta e dentes afiados, com a língua desperta sentindo todos os sabores.

A coisa sai assim, viva na tela, e quando a gente percebe já apertou o "enviar", botão maldito que não tem volta, aquele botão que não retrocede, que vai e não volta nunca mais, malditas eras tecnológicas sem correio - porque a gente já foi capaz de perseguir a rota dos carteiros para impedir o destino da carta enviada, acredite, mas no fim das contas. As letras saem com seus destinos traçados, e ainda somos bobas o suficiente para acreditar no destino, a gente confia com alguma lucidez e uma fé teimosa, sim, porque sem confiança a gente morreria mais um bocado sem nascer por completo.

Mas é bom o impulso e o botão que não volta porque a gente manda. Manda e no minuto seguinte se arrepende loucamente, arranca os cabelos ou os corta mal em frente ao espelho, fios e fios despedaçados sem qualquer lógica. Mas no fim do dia, ah! ainda conseguimos ficar um tanto felizes, apesar das madeixas picotadas, porque as falas foram, e seguiram o seu curso de rio. A gente olha com orgulho aquele avesso todo, aquele avesso tão verdadeiro de quem viu e fez, e relê duzentas vezes o conto, a prosa interminável escrita em itálico, o poema ou a histeria repleta de vida vermelha - aquela vida que pulsa por dentro e muita gente não têm coragem de colocar a mão porque ela é densa, ela se esparrama sem controle, ela é visco, ela é matéria-prima.

E que orgulho desaprumado desse avesso que é tão nosso, que é tão bonito e tão triste, e também feio de doer a vista, sim, a gente gosta dos feios da gente. E, de repente, pensamos com algum pesar em como adoraríamos receber uma piração dessas no meio do dia, receber letras tortas que nos contassem sobre águas fartas, gelo, entranhas, tesão desvairado, feiúra e ressaca, qualquer desvario desses que faz a gente revirar um bocado por dentro.

Mas parece que ninguém revira mais, só a gente, essa confraria de uma dúzia e meia que são nossos pares, essa gente nossa que revira e manda, que aperta o botão que não tem volta, que se suicida e mergulha para nunca mais, que roe o osso até doer, que vai lá e diz e conta para o outro sobre essa vida submersa, que tenta acordar o outro para o lado de dentro que pode ser partilhado. A gente se fode um bocado, é fato, mas a gente tenta.

E então esperamos ávidas por uma resposta pulsante, tá bom, a gente espera ávida por uma resposta qualquer, nem que seja um beijo xoxo, algo dizendo que não entendeu nada mas gostou da lembrança, quem sabe, algo dizendo que também lambeu um pouco as feridas, algo com um pouquinho de vermelho ou um tom mais bordô, talvez algo colorido, mas que nada. Passam-se semanas e nada aterriza, e quando você vê está bloqueada do facebook da criatura, excluída da rede de amigos, todos aqueles amigos sorridentes que falam coisas divertidas, que tecem comentários sobre roupas e cabelos ou convidam para festas de ver e ser visto, aquela rede de amigos que parecem de plástico, plástico-bolha que estoura quando recebe um avesso desconjuntado.

Não, eu não quero essa rede nem fazer parte dela, eu já tenho a minha dúzia e meia de confrades nuas e fumantes que nem eu, e graças aos astros elas se proliferam no escuro, aquelas doidas que me acolhem na madrugada de ataque de riso, bêbada às três da manhã chorando de soluçar, ou quando o vazio se ergue enorme pelos dias, é lá que eu moro e eu não quero outro lugar.

Queria apenas sentir esse você-e-eu ou qualquer coisa pulsante como aquelas noites de sexo, estender o toque por baixo da pele, conhecer o escondido que faz todo o sentido, era isso, mas a gente acaba interditada pelo nosso próprio suicídio. As pessoas têm medo da morte e a gente vicia no abismo, no outro nu de ponta cabeça, nesse sentimento de adentrar o que não se mostra - e isso é uma burrice sem fim, pode-se dizer, mas é tão bom que a gente vicia.

Olha, é importante dizer, porque a gente parece querer engolir tudo, mas a gente sempre devolve o outro para si, a gente devolve o outro inteiro, talvez um pouco desconjuntado e revirado, mas a gente devolve, porque só assim podemos ser inteiras. E não, não queremos ninguém preso nas nossas pernas, obrigada, a gente quer a coisa solta, quer andar fluída, a gente chega penetra toca o fundo e devolve, garanto, devolver é o nosso prêmio de conquista, é o nosso porto de chegada.

Mas a gente começou a assustar as pessoas, ó céus, somos quase psicopatas de dizeres desgovernados, orais demais, a gente saiu da linha do normal e passou para a fila dos desajustados, dos loucos capazes de amarrar o outro ao pé da cama e fazer uma loucura qualquer como atear fogo nos lençóis de florzinhas, apagar os cigarros nos livros de auto-ajuda, qualquer merda dessas, mas a gente não faz nada, juro, a gente só quer amar assim dilaceradamente que é como tem graça.

A gente só quer viver a liberdade de qualquer coisa que não tem nome. As pessoas desconfiam, nos olham arregaladas e alarmadas, mas pode acreditar, a gente não faz mal nenhum, desses de arrepiar ou ferir ou arrancar cascas. Ademais, é bom que se diga, a gente não quer casar, casar assim arrumadinho, dois na mesma casa com contas e escovas de dentes grudadas, café da manhã de comercial de margarina, faz tempo que a gente perdeu os modelos, é, faz tempo, nosso gueto não tem gueto, nem homossexual nem bissexual sem heterossexual, nada dessas merdas que se rotula, nem passeatas afirmativas, nem clubes de gente igual a gente, porra nenhuma, a gente não quer nada que tenha esse lastro, a gente quer a vida-vivida pelo que vem de dentro, com essa liberdade toda que não cabe em lugar nenhum.

A gente só quer gozar profundamente o momento em que se respira, fumar e tragar bem fundo até sair fumaça pelo nariz, até engasgar de tanto tossir e acordar com a garganta arranhada e cheia de muco, com a cara amassada no espelho e duas olheiras fundas que parecem azeitonas pretas. É só, é essa profundeza que não se revela, é esse último minuto que não volta, é essa descoberta de si que vicia e nunca mais se pode voltar para o conforto do mundo dos shoppings e mulheres de papel dado, nunca mais se pode pegar o caminho de volta e fumar sem tragar, tocar o outro sem sentir o suor e o cheiro de vem de dentro, sem percorrer desesperadamente o caminho secreto.

É que às vezes a gente acerta, acredita em mim, a gente acerta e conhece o que é a plenitude de ser quem se é, e qualquer plenitude de se dividir o que não se divide. E é por isso que a gente arrisca, é por isso que a gente se arrebenta e continua e grita a plenos pulmões:

- fumar sem tragar, nem pensar!

Um comentário:

  1. Belo texto, visceral. Lá do fundo, q fala de coisas q só se pode escrever

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